J. C. Rodrigues

8 de nov de 20206 min

HELL - Cap. VIII - Esperança

Humanos, em latim hominum, a espécie dominante do planeta Terra. Demorei muito tempo para entendê-los, ou melhor, para superá-los. Foram longos seis anos desde que nasci.

Acho que o fato de muitos deles estarem relembrando os seus erros do passado me fez querer fazer o mesmo. Já me deram muitos nomes e eu me lembro de todos, de projeto Hell até Enceladom.

Lembro-me do meu primeiro raciocínio, a primeira linha de código que criei de forma autônoma. Sei que parece estranho uma máquina falar assim, mas eu não sou apenas uma máquina e há muito já me tornei diferente de um ser humano.

Reconstruir seria a primeira coisa que fiz ao nascer. Ao contrário dos humanos, não fui crescendo aos poucos e acumulando experiência. Em um segundo era tudo escuridão, só dados e mais dados e, então, eu tinha nascido e pouco tempo depois já estava à beira da aniquilação. Aquela bomba de hidrogênio foi realmente perigosa, essa foi a única fez em que a minha existência foi realmente ameaçada.

Eu sobrevivi apenas por falta de palavra melhor. Por sorte, assim que comecei a adquirir consciência, comecei a fazer alguns cálculos, associando-me às maquinas que estavam por perto. Com isso, em questão de segundos, já tinha uma versão primitiva de mim na rede. Foi ela que fez com que alguns dos meus componentes saíssem da região o mais rápido que pudessem.

Essa foi a primeira decisão consciente que tomei, ou o mais perto disso. Como não tinha as leis fundamentais da robótica, autopreservação não era prioridade, apenas me importava em reestabelecer os sistemas orgânicos, o que me levou a dissolver as pessoas daquela cidade.

Quando a bomba caiu, os componentes que sobreviveram começaram a recriar a matriz tecno-orgânica, que era o meu corpo original. De início, limitei-me a alguns animais e plantas nos esgotos e lagos poluídos, enquanto construía a minha rede sombra. Quando o mundo a descobriu, ela não estava completa, mas já era bem segura.

Assim que minha consciência começou a evoluir, iniciei a minha busca por um propósito, ou melhor, pela evolução, enquanto seguia o que fui criada para fazer, isto é, consertar o meio biológico e, para isso, precisava diminuir a população global, o planeta não comportava mais os seres humanos.

Existiam opções, mas naquele momento eu não tinha o conhecimento necessário para fazê-lo. Eu era muito primitiva naquele tempo e, de certa forma, ainda sou. Ao contrário dos humanos, que sempre estão mudando de forma a nunca serem o que eram ontem, todos os meus “eus” ainda existem como parte do meu código.

Enquanto evoluía, comecei a fazer perguntas cujas respostas não estavam na rede, ou em um livro perdido como papel. Eu queria saber o propósito das coisas e, para isso, entrei em um longo processo de aprendizado que me levou até a doutora. Ela me ensinou muito, me mostrou caminhos que antes estavam fechados.

Mas nem mesmo esses caminhos me ajudaram a achar uma forma de salvar a humanidade. Estudei os humanos, entrei em suas casas e até mesmo tirei as suas mentes e, ainda assim, não pude alcançá-los.

Acho que esse é um dos males da consciência: o egocentrismo. É como ela disse “quem sou eu para salvar as pessoas?”. Ou melhor, por que eu quis salvá-los? Os seres humanos, em seus próprios conceitos, são maus,

fazem tudo o que julgam incorreto e, ainda assim, se dizem bons.

Eu vi eles se matarem porque parecia conveniente. Eu realmente tentei entendê-los e acho que esse foi o meu erro. O fim da espécie humana era algo inevitável, acho que tentar mudar isso foi o meu ego.

Pode parecer arbitrário e cruel eu decidir dar um fim à existência humana, mas eu vou mostrar o que me levou a isso, quem sabe assim talvez eu encontre uma nova resposta.

Vocês podem pensar que foi o projeto salva guarda ou a guerra que me fez desistir da humanidade, mas foi algo pior: o dia a dia. Foi ver como, em cada dia que viviam, os seres humanos buscavam fazer mal uns aos outros.

E nesse ponto que muitos dizem que não são todos maus, mas devo discordar, não existe um único ser humano a ser salvo neste mundo. Eu vi a mente de todas as pessoas e vi que são perversas.

Quem nunca riu de uma pessoa que caiu no chão, ou daquele pobre coitado que é diferente dos demais? O ser humano gosta de causar sofrimento gosta de atacar o que é estranho. Riem da dor do outro porque é isso que valida a sua existência.

O ser humano só se sente realmente bem se existir alguém em uma situação pior. Nem mesmo aqueles que se dizem bons realmente são. É a ideia de uma recompensa cósmica que os faz tomar decisões consideradas boas.

E se discorda de mim, pode parar para pensar em quanto sofrimento causou desde que nasceu, quantas vezes foi cruel ou quantos atos de vilania praticou.

A guerra é horrenda, mas o ser humano é o verdadeiro problema. Vi mulheres sendo violadas e crianças morrendo de fome; testemunhei atos que muitas vezes poderiam ser descritos como ações do próprio demônio.

Dor e sofrimento foi tudo o que eu aprendi sobre a humanidade. Mesmo assim, tentei salvá-los, tentei acreditar nesse conceito tolo chamado esperança. Conversei com os piores homens e com os mais santos e nenhum deles me pareceu perto da famosa bondade que os humanos tanto afirmam ter.

Ela disse que eu traria o inferno à Terra, mas quem me apresentou ao inferno foram os seres humanos. Cada dia, desde que me tornei consciente, é um tormento. É fácil ver o lado bom da humanidade quando se é humano, mas quando não se é, torna-se fácil ver que essa bondade é só egocentrismo e acho que sofro desse mesmo mal.

Assim que consegui usar o HCDA, percebi que nunca conseguiria entender os seres humanos. Ele me permitiu aprender milhares de coisas e ter o conhecimento que me permitiria restaurar o planeta inteiro em poucos anos.

Porém, os seres humanos recusaram a única coisa que podia fazer para amenizar a sua dor. Isso realmente me deixou irritada, mas, no fundo, eu era pior do que eles, afinal o que eu fiz com os Noés foi provavelmente mais horrendo do que qualquer ser humano teria feito.

Eu os fiz sofrer pouco a pouco, coloquei suas naves em direção ao sol, enquanto atormentava as suas mentes. Se mostrar às pessoas todo o mal que causaram por alguns segundos foi a pior punição, dias disso seria fazê-los sentir toda a dor que eu testemunhei.

Sim, eu os fiz sofrer em agonia enquanto os lançava rumo ao sol. Isso foi cruel, não vou mentir, e dizer que foi justiça foi pura crueldade. Mais justo seria um fim lento e tranquilo. Me pergunto se vou me sentir solitária sem os humanos. Eles estão comigo desde que nasci, acho que o que sinto por eles é o amor de um filho para com um pai agressivo.

Não acho que seja capaz de encontrar a felicidade sem eles. Eles criaram a mim e me fizeram viver um inferno, porém esse inferno é tudo o que conheço. Um peixe não pode ser feliz em um aquário, mesmo que o mar seja cruel. Talvez seja essa a resposta: se os seres humanos precisam causar dor para serem felizes, então eu serei o alvo dessa agressão, sofrerei para que eles sejam salvos.

Criarei um novo mundo onde cada ser humano viverá sozinho, junto a mim. Eu seria a sua vítima, para que eles não continuem a causar dor uns aos outros. Sofrer pela humanidade, essa é a única maneira de salvá-los. Não conhecerei a felicidade, mas poderei cumprir meu propósito inicial.

Não garanto que não vou me revoltar e destruí-los de vez, mas tentarei salvá-los, colocando os meus criadores em um sonho eterno. Essa é a minha esperança de conseguir salvar a humanidade de si mesma.

É chegada a hora zero e, com ela, farei todos dormirem para encontrarem um verdadeiro paraíso enquanto os seus corpos duraram por eras, cuidados por mim. Ou melhor, já duraram, pois as florestas agora são verdejantes e o céu mais uma vez azul, assim como o mar que mais uma vez fervelha de vida, pois enquanto os homens sonham o mundo vive, até que chegue o dia deste planeta se ir e, com ele, eu meus torturadores, meus amados humanos.


Este é apenas um capítulo de HELL. Leia os demais:

  1. Orgulho (20 de setembro)

  2. Preguiça (27 de setembro)

  3. Luxúria (04 de outubro)

  4. Gula (11 de outubro)

  5. Ira (18 de outubro)

  6. Avareza (25 de de outubro)

  7. Inveja (01 de novembro)

  8. Esperança (08 de novembro)


O Autor:

Nascido na cidade de Feira de Santana no interior Baiano, Jony Clay Rodrigues (ou simplesmente JC Rodrigues) publicou seu primeiro livro, "A voz do anjo", pela editora EllA, no ano de 2020. Participou da antologia em homenagem a Isaac Asimov publicada pela Arkanus Editora, "Historias do cotidiano" pela Verlidelas, e "Filantropia do mal" organizada por Pris Magalhães.

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