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Foto do escritorJ. C. Rodrigues

HELL - Cap. I - Orgulho

“Tema o que está diante dos teus olhos,

se esconda do que se esconde e pereça

frente a um mal desconhecido"


Os dias parecem mais frios e o brilho do Sol parece mais tênue. Eu poderia dizer que isso é o sinal do fim do mundo, mas provavelmente é apenas a minha mente fatigada procurando entender que esse é o mesmo mundo em que nasci e cresci, um mundo que vai continuar a girar sem mim, sem nós.

A este ponto você deve se perguntar: quem é você? O que você fez? Qual calamidade se abateu sobre o mundo? Mas, não se preocupe, não planejo lhes enrolar por muito tempo. Agora me encontro prestes a deixar este mundo e, para trás, deixarei gravado em pedra os meus erros, os meus pecados que trouxeram o fim ao mundo que provavelmente já estaria condenado sem mim.

HELL, a primeira BIO-IA, uma máquina feita de componentes biológicos e artificiais, que buscava ser o primeiro passo na evolução humana fora da área da manipulação genética, mas que ficou estagnada depois do incidente das irmãs Khan, duas irmãs gêmeas com mais de 20% do DNA editado em laboratório para poder atender às características desejadas pelos pais, que sofriam de malformações congênitas.

O pai tinha tendência à formação de nódulos rugosos e a mãe tinha uma doença que fazia a pele acima dos olhos se esticar e deformar com um acumulo anormal de gordura, elas nasceram saudáveis, sem nenhuma má formação, até que foram para casa e morreram dois dias depois. A causa da morte foi uma simples bactéria doméstica. Ao editarem o código genético, comprometeram a produção de uma determinada proteína da pele que ajudava a proteger o organismo.

Foi um escândalo na época, ajudando a emplacar leis contra a manipulação genética de humanos e quebrando a IAT (IA Technology), empresa especializada no desenvolvimento de interfaces para inteligências artificiais, uma vez que boa parte da IA que possibilitara a edição genética estava ligada a ela.

Esse foi o começo da renovação da antiga guerra travada entre os ignorantes e aqueles que queriam o progresso utilizando as IAs. Realmente, me amargura um pouco pensar que eles estavam certos, mas acho que olhando friamente para a situação, era óbvio que algo daria errado.

Eu disse que não enrolaria, mas acho que estou fugindo do que queria contar; talvez seja a vergonha pelo que fiz. Porém, deixar algo para o futuro (uma lembrança, mesmo que fugaz) da humanidade é mais importante. Não direi o meu nome, podem apenas me chamar de "humano", se quiserem uma palavra para atrelar a quem eu sou.

A maioria dos pesquisadores viu a IA que fracassou ao auxiliar a edição genética humana como o maior erro científico da história moderna, porém para mim era como culpar uma chave de fenda por não servir como colher.

Ao analisar o funcionamento da IA, disponibilizado para que a comunidade cientifica buscasse no código uma forma de provar sua inocência no fracasso, pude perceber que ela era o que eu buscava, uma IA feita para edição genética avançada, o ponto chave para avançar o projeto Hell.

De início, o Hell deveria ajudar a combater as superbactérias e as dezenas de doenças modernas ligadas à poluição e ao uso indiscriminado de antibióticos, mas com essa IA eu vi que poderia fazer bem mais que apenas criar um novo sistema de imunidade artificial: eu poderia curar todas as doenças não genéticas (e até mesmo estas teriam seus efeitos amenizados).

O conjunto absurdo de possibilidades enchia os meus olhos, eu era como Ícaro, maravilhado com o sol (e assim como ele, minhas frágeis asas não me permitiram alcançar o que eu almejava).

Inicialmente, Hell apenas atacaria células cancerígenas e vírus, enquanto ajudava na manutenção do corpo hospedeiro, porém, com a IA, poderíamos fazer muito mais que isso. Regenerar tecidos ou editar os anticorpos para multiplicar a eficiência do sistema imunológico em mais de cem vezes, eram algumas das possibilidades.

Depois de ver como a IA funcionava, percebi que poderia usá-la acoplada a uma célula orgânica semelhante a uma célula tronco, que se fundiria ao hospedeiro enquanto se replicava, usando os materiais do próprio organismo.

Os primeiros testes foram bem promissores, mas com o tempo apareceu um problema: a IA parava de funcionar. Após a célula se dividir um grande número de vezes, ela não conseguia produzir nano máquinas na mesma velocidade da divisão celular e existiam regiões do corpo que não possuíam as substâncias necessárias para isso.

Por exemplo: se ela ficasse presa nos pulmões, não poderia se dividir e, com isso, as células sem a IA tornavam-se corpos estranhos, induzindo o sistema imune a atacar, causando uma forte reação no organismo que destruía até mesmo as células com IAs.

Eu e a equipe tentamos reduzir a divisão celular, mas isso era difícil. A única outra solução seria dar à IA total controle das células, fazendo com que as guiasse pela circulação sanguínea, controlando suas interações com o ambiente do interior do corpo humano, fazendo edições genéticas quando julgasse necessário para o proteger.

Porém outro problema surgiu: para guiar as células, a IA precisaria trocar informações, como uma versão em miniatura da rede, entretanto, não havia como essa comunicação ocorrer, devido à limitação das nano máquinas enviarem e receberem sinais sem estarem muito próximas umas das outras.

O projeto Hell tinha chegado a uma grande barreira, assim como a perda sucessiva de apoiadores tornava mais difícil pagar as contas e custos do projeto. Cada dia mais membros saíam da equipe, eu estava para ser arruinado, provavelmente só conseguiria um emprego em uma universidade como professor e sairia de vez do ramo de pesquisa, como muitos dos meus colegas, superados por mentes mais jovens.

A cada dia que passava, a cada novo fracasso, eu sentia um profundo desespero. Era como se, no final, eu não fosse bom o bastante. Eu sempre me superei, nunca encontrei algo que não pudesse fazer e, nesse momento, era como se a vida estivesse querendo me dominar e me mostrar como eu era insignificante.

Eu realmente deveria ter parado nesse ponto, ter ido trabalhar em outra pesquisa, mas meu orgulho não deixou. Em uma noite, me dediquei, com um colega, a analisar toda a pesquisa, cada fracasso e acerto, em busca de respostas.

Poderia dizer que foi um dia chuvoso ou que a noite tinha algo de maligno no ar, mas seria exagero. Afinal, se eu não estivesse tão estressado com o meu trabalho, ela provavelmente seria bem agradável.

O ar seco da sala com ar-condicionado e todo o branco do meu escritório tornavam tudo ainda mais irritante, meus dentes estavam serrados quando, depois de horas de debate e de finalmente ter chegado a uma solução, fui parado pelas Leis de Asimov.

As Leis de Asimov ou as Leis da robótica foram apresentadas pela primeira vez no livro “I, Robot – Isaac Asimov” e até hoje ninguém realmente sério chegou a questioná-las.

Eram três alicerces, assim como as Leis de Newton, e funcionavam muito bem, pois, em conjunto, impediam que robôs (ou melhor, a inteligência artificial embutida em máquinas como um todo) causassem mal ao ser humano.

“Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal” essa é a primeira lei, que garante a não agressão e a obrigação das máquinas em nos proteger. Já a segunda, garante a obediência: “Um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei”. Por fim, a terceira envolve a autopreservação, dito que uma máquina, como propriedade, deve zelar pelo seu bem estar: “Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Lei”.

“Você não pode fazer isso. Se for pego, sua carreira acaba”, falou o meu colega, vendo que eu pretendia seguir em frente com a ideia de tirar as linhas de código que continham as leis de Asimov das nano máquinas, e, assim, conseguir fazê-las operar com 100% de autonomia, com uma quantidade limitada de armazenamento.

“Não tenho escolha, não há mais tempo ou dinheiro. Se um protótipo funcionar, volto a receber investimentos e consigo tempo para resolver esse problema”.

“Você quer dar cem por cento de autonomia para uma IA e ainda sem as Leis… Você pode ser preso”.

“Só se me descobrirem, ela vai estar contida dentro de um laboratório em um corpo orgânico, além disto, sem um hospedeiro, é completamente inútil”.

“Você pode ter razão, mas não espere que eu te ajude nessas coisas, tenho família e um filho pequeno”.

“Você sempre teve mente pequena, nunca inovou. Seu filho não seria mais feliz se tivesse o nome do pai dele nos livros de história?”.

“Eu acho que ele prefere o pai em casa para o jantar. Não vou te ajudar, mas não vou te atrapalhar. Para nós, eu nunca estive aqui”, falou meu velho colega de tantos anos e o mais próximo de um amigo que cheguei a ter. Nossa amizade foi a primeira coisa que Hell levou ou simplesmente que eu deixei ir.

Ao longo dos anos, enquanto ia atrás dos meus mestrados e das minhas pesquisas, deixei as pessoas irem. Eu não precisava delas. No final do dia, cada menção em um artigo, cada convite para uma palestra era o suficiente para me satisfazer, eu era bom, eu era o melhor, eu era eu. Um prêmio Nobel era uma das poucas coisas que me faltava.

Pensando agora, talvez eu fosse como um viciado que não sabia reconhecer os males do seu vício. Mas já me prolonguei demais e, em breve, chegará a hora zero ou, como outros chamam, a meia noite.

Sem o meu colega de anos para me ajudar com o código da IA, tive que recorrer a profissionais menos conceituados. Eu entendia um pouco de programação, mas não conseguiria editar o código completo.

Uma coisa interessante sobre as universidades: elas estão cheias de gente disposta a fazer quase qualquer coisa por alguns trocados (mesmo que seja ilegal). Os custos para se formar no ensino superior são altos e a maioria frequentemente acaba em empregos que pagam pouco, enchendo-os de dívidas no início da vida adulta.

Não foi trabalhoso achar um prodígio da programação que pudesse me ajudar a editar algumas linhas de código. Eu liguei para um colega dos tempos do mestrado, que era professor dessa área. Apesar de tudo, era sempre bom ter contatos.

Ele me recomendou um garoto mirrado, de costas envergadas e com um péssimo hábito de não olhar nos olhos. Não esbanjava confiança, o que era bom. Nunca gostei de pessoas que me desafiavam, principalmente jovens que mal tinham saído das fraldas.

"Ma-mas… É errado". Foi oque ele me veio dizer, com uma voz meio fanha, quando eu o pedi para fazer a edição. No final, foi fácil convencê-lo. Pobre David, sem confiança ele era como um peixe em um mar de tubarões, fazendo o que lhe era dito.

O laboratório estava vazio no dia que ele foi fazer a edição do código, quanto menos testemunhas, melhor. Aquele ambiente branco, com constante cheiro de álcool que, para mim, era tão familiar, para ele foi fantástico, provavelmente era a primeira vez que entrava em um laboratório tão moderno.

Levou algumas horas, mas ele conseguiu cumprir o combinado e retirar as leis de Asimov. Isto permitiu que a IA tivesse um programa avançado o suficiente para controlar a sua célula hospedeira. Visto de um microscópio, o componente mecânico da BIO-IA era um fio muito fino que entrava e saía da célula, como se fosse uma costura.

Quando David terminou, usei uma desculpa qualquer para botá-lo para fora. Pensei em dar a ele um emprego temporário, mas não sei se conseguiria aguentar aquela maneira frágil dele.

Faltavam algumas horas até o resto da equipe chegar, tempo suficiente para preparar um cultura e fazer alguns testes iniciais. Se tudo desse certo, aqueles que me abandonaram teriam que voltar se arrastando para manter as suas carreiras. Acho que se vissem o meu rosto contente enquanto injetava o liquido contendo a BIO-IA em um pobre porco de tamanho médio, vocês talvez sentissem um pouco de nojo.

O porco chiou um pouco, mas logo se acalmou com o sedativo que lhe dei. Colocando-o sobre a grande mesa de metal onde estava o equipamento que media os micro sinais que a IA emitia, pude ver, pouco a pouco, o número de pontos vermelhos na tela aumentar, mas isso não significava nada até ter se passado o tempo adequado. Se tudo estivesse bem, porém, o número de nano máquinas não pararia de aumentar.

Eu estava cansado dos dias estressantes que precederam aquele, mas ideia de estar próximo de realizar um grande feito e até mesmo conseguir um prêmio Nobel,

Tal ideia foi, para mim, mais confortável do que qualquer travesseiro. Foi naquela cadeira que tive a melhor noite de sono da minha vida.

Acordei com uma das técnicas do laboratório me chamando. Era clara a empolgação em sua voz. Enquanto ela esperava eu me recompor, alguns outros funcionários também haviam chegado e se agrupavam próximo ao porco, maravilhados.

“Senhor, está funcionando”, falou a mulher de baixa estatura, com cabelos cacheados e uma bela pele morena.

Em questão de segundos, percebi sobre o que ela falava. Ignorando-a, imediatamente fui até o computador, que plotava um gráfico de pontos do número de nano máquinas em função do tempo, e era uma linda curva exponencial que crescia lindamente em função do tempo. Em questão de uns dois dias, se tudo corresse como o esperado, o número ficaria estável e iríamos para próxima fase.

Vendo o gráfico, não pude deixar de esboçar um sorriso quando os meus colegas de laboratório começaram a bater palmas. Aquela sensação era a melhor do mundo: ser reconhecido por pessoas de várias especialidades como um grande cientista. Era tão bom quanto um bom vinho envelhecido.

Depois de deixar as ordens para o resto da equipe, me permiti ir para casa descansar. Minha casa ficava em uma região afastada, próxima a um parque ecológico, o que, com as novas leis ambientais decorrentes da crise ambiental de 2075, significava limites de casas em um raio de um quilômetro da área de preservação, assim como a retirada de vias diretas pela região, para reduzir ao máximo o número de carros.

Não foi uma transição fácil, mas com uma boa indenização e a venda de apartamentos populares no centro, financiados pelo governo, tudo correu de forma gradativa, mas rápida, principalmente com a construção de prédios de mais de 200 andares, possíveis graças à revolução das ligas metálicas e do concreto, devido à descoberta de um nova gama de elementos químicos vinda da exploração espacial de certos pontos entre a órbita de Marte e Júpiter, dentro do cinturão de asteroides.

De início, era realmente cara a exploração desses elementos, mas, com o tempo, as aplicações e a escassez de recursos tornaram-na viável, assim como incentivou uma aceleração na exploração do espaço.

Mas isso é algo que realmente não importa mais. São nesses momentos que me pergunto quem terá a pior morte: nós aqui na Terra ou aqueles que ficaram presos no espaço, exilados do próprio planeta, até ficarem sem comida ou água e morrerem no frio do espaço, porém não tenho tempo para divagar sobre essa questão.

Quando cheguei em casa, joguei o casaco sobre a poltrona da sala de estar, enquanto me dirigia calmamente para a cozinha. Minha geladeira estava praticamente vazia, não tinha tido tempo suficiente para fazer compras nas últimas semanas, porém, com um simples comando para Estella, a IA que controla os sistemas da casa, pude fazer um pedido para uma das várias empresas de comida que tem na cidade.

A comida era enviada por drones, que voavam em alta altitude para levar a comida perfeitamente selada até o destino. Era realmente perigoso comer na rua ou não transportá-la selada em algumas cidades, como a minha, quando a crise ambiental estourou e o número de mortes começou a aumentar os governos federais delegaram a questão para cidades e estados, o que criou uma disparidade entre os modelos usados. Algumas conseguiram converter boa parte de sua frota para maquinas elétricas, outras promoveram o uso de combustíveis menos poluentes para conseguir dinheiro com as indústrias à beira da falência de combustíveis fósseis, que foi usado em reformas e desapropriações, porém esse último não ajudava a questão da poluição do ar, gerando grandes nuvens de poluentes. Mas, se tivéssemos mais tempo, esse acordo quebraria junto às empresas.

Em alguns minutos, Estella avisou-me que minha comida havia chegado. Fui até o deque da varanda, que dava para um terreno aberto e, para além dele, a reserva ecológica. Pude ver que a embalagem estava coberta por fuligem, mas com certeza a comida não havia sido contaminada. Usando minha digital, confirmei o pagamento via internet, enquanto abria a embalagem para comer o pequeno café da manhã que pedira.

Leite, presunto, queijo e alguns defumados, com algumas fatias de pão, foi o que pedi. Normalmente não como queijo, já que este ficara caro desde que um fungo muito resistente acabaraou com a produção de queijo, tornando o processo de fabricação muito caro. Mas eu merecia esse mimo.

Depois te tomar o meu café da manhã, sentei em uma cadeira no deque e ouvi os pássaros cantarem enquanto o vento frio atingia minha face. Os grandes prédios diminuíam bastante a temperatura da região periférica da cidade.

Era realmente algo relaxante, mas se ficasse parado não poderia continuar o meu caminho rumo ao topo. Depois de uns trinta minutos, recolhi-me dentro de casa, para poder fazer algumas pesquisa em meu escritório, que era para ser o segundo quarto da casa, mas após a morte de meus pais, ele ficara sem utilidade.

Em meu escritório, pude analisar os dados dos últimos fracassos e acompanhar, em tempo real, o crescimento da colônia de nano máquinas. Elas estavam crescendo rápido demais, porém isso não era problema, só tínhamos que recalcular a concentração das substâncias presentes no soro que usávamos para nutrir o porco. Com um e-mail, enviei as novas instruções para a equipe. Em questão de minutos, tive a resposta que os ajustes haviam sido feitos, eles estavam dando tudo de si para garantir o sucesso do projeto, porém era questão de tempo até ter que explicar como conseguir resolver os problemas.

Apesar de ter muito ainda a ser feito, resolvi mandar uma mensagem para a Senhorita Maria de Laplasta. Ela era dona de um dos maiores blogs de ciência do país, responsável por traduzir para os leigos as maravilhas da primeira grande era da ciência.

Normalmente, seria muito precipitado fazer a divulgação de um trabalho que vinha de uma série de fracassos, mas eu precisava de divulgação para conseguir dinheiro suficiente para terminar os ajustes necessários e, finalmente, ter o meu nome de vez nas páginas da história.

No final do dia, depois de conversar com vários colegas para espalhar pela comunidade científica boatos de como o meu projeto estava avançado, recebi uma ligação do laboratório. Havia algo errado.

Sempre me senti privilegiado por morar na periferia, longe do caos do centro e dos prédios de concreto, mas nesse dia isso me irritava. As várias curvas que tinha que fazer para chegar ao laboratório tornavam o trajeto mais demorado e, para piorar, havia um grande engarrafamento no centro, o que tornou minha decisão de ir pelo meio da cidade, e não dar uma volta pela rodovia, ineficiente.

Enquanto serrava os dentes, preso dentro do meu carro, com o vidro quebrado, via algumas poucas pessoas andando pela rua. Com a noite, a fumaça se condensava próxima ao solo, era perigoso sair sem máscara se tivesse problemas respiratórios.

Depois de conseguir avançar duas quadras, pude ver, pelo vidro do carro, um pobre homem jogado entre dois prédios. Ele não parecia muito bem, com a sua roupa em farrapos e a sujeira que marcava sua pele. Provavelmente não tinha conseguido forças para subir até as vias altas.

Com a revolução do concreto, com a finalidade de aumentar o espaço para os carros e dar lugares aos pedestres, foram criadas as vias altas ou centopeias, grandes viadutos que existiam apoiados nos prédios, a vários metros de altura, indo de um lado para outro da região central da cidade, que podia chegar a até quinze quilômetros quadrados de área.

Um dos problemas das vias altas era que elas bloqueavam grande parte da luz solar, assim como os prédios. Havia uma rua de dois quilômetros, em uma cidade, que só via a luz do sol uma vez por ano nos últimos quinze anos, devido ao mesmo fenômeno.

Em cerca de dez minutos, consegui pegar uma via alta que me ajudou a chegar mais rápido no laboratório. Enquanto subia pelas vias, pude ver, de relance, mais pessoas que se ariscavam, subindo até as vias mais altas para ficarem nos bolsões de calor que se formavam debaixo de algumas delas.

Era realmente chocante, à primeira vista, pessoas escalando prédios e vigas a dezenas de metros de altura, sem equipamentos, para não morrer de frio ou não engasgar com uma nuvem muito densa de poluição. Mas depois de um tempo você se acostuma, não se pode fazer nada por eles quando se tem tantos problemas mais urgentes para resolver.

Da via mais alta, pude ver a cidade que se estendia, escura — exceto pela iluminação das ruas — e algumas poucas janelas que não usavam vidros escuros. Com a internet, as fachadas chamativas sumiram e deram lugar ao concreto e aos pisos padronizados. O exterior não importava, já que o que tinha por dentro podia ser facilmente conferido com dois cliques.

Finalmente, depois de uma hora e meia, consegui chegar à região da cidade onde ficavam os laboratórios, escondidos atrás dos grandes prédios. Devido à necessidade de espaço e silêncio para pensar, regiões voltadas para grandes instituições de ensino ficavam mais afastadas do centro, com prédios de, no máximo, seis pavimentos e com uma área aberta em volta, cujo perímetro era delimitado por um muro e um cerca anti-poluição, que utilizava campos elétricos para fazer com que as partículas finas de poluentes fossem redirecionadas. Isso ajudava a amenizar os efeitos da poluição na região.

Assim que entrei na região, pude abrir o vidro do carro. O ar não estava puro, mas estava em um nível aceitável. Ignorando a sinalização parei no meio fio e corri para dentro do laboratório.

Enquanto descia de elevador até o andar subterrâneo, o som das batidas descompassadas do meu coração chegavam aos meus ouvidos como marteladas.

Quando entrei no laboratório, fui direto ao encontro de Ester, que estava debruçada no computador olhando gráficos e planilhas com um olhar de desespero.

“O que está acontecendo?” eu perguntei diretamente para ela, enquanto olhava os dados no computador.

“A temperatura do corpo do espécime está muito alta e continua a aumentar, assim como a divisão das nano máquinas, que está extremamente fora das projeções”.

Isso era ruim, muito ruim. A produção de nano máquinas não estava estável, as reações químicas, aceleradas, estavam causando um aumento radical da temperatura, eu provavelmente havia me arriscado por nada.

“Coloque o espécime no gelo”. Se conseguisse reduzir a temperatura, para evitar que o espécime morresse, poderia focar em controlar o número de nano máquinas.

“Mas esse é o problema, senhor, já fizemos isso”, ela me respondeu, fazendo com que minha frustração aumentasse.

Deixando Ester para trás, fui examinar o porco diretamente. Ele havia sido colocado dentro de uma grande bacia de alumínio, imerso em gelo. Também fora colocado um tubo para respiração, enquanto a boca fora devidamente fechada para que ele não se afogasse.

Não sabia a quanto tempo ele estava ali, mas a maior parte do gelo já havia derretido, mesmo na baixa temperatura do laboratório. Quando me aproximei mais da bacia, pude ver a água começar a mudar de cor. Ela estava em um tom amarelado, enquanto porco começava a inchar.

A IA provavelmente tinha consumido todo o ferro do sangue enquanto os gases das reações químicas sem controle que ela estava produzindo faziam o porco inchar, não tinha mais nada que eu pudesse fazer, havia fracassado outra vez.

Não pude evitar gritar e socar a parede, em frustração por ter me arriscado à toa, porém algo me ocorreu: como o porco estava vivo, sem ferro no sangue, não tinha como as células receberem oxigênio. Com um grito, pedi para o técnico mais próximo coletar uma amostra da água. Eu tinha uma hipótese que queria confirmar.

Assim que coloquei o líquido no microscópio, vi exatamente o que esperava: a IA tinha editado as suas células para agirem como hemoglobinas, ela provavelmente estava substituindo todas as células do hospedeiro. Quando eu a programei para crescer em rede, abri uma brecha para isso.

Podia não ser um sucesso, mas poderia ser uma oportunidade. Se eu descobrisse uma forma de controlar a divisão celular, poderia usar isso para regenerar órgãos inteiros com zero chance de rejeição, o que me faria ganhar muito dinheiro, já que a clonagem de órgãos estava estagnada, uma vez que os órgãos clonados tinham cinco vezes mais chance de desenvolver câncer que os originais ou transplantados.

“Senhor”, chamou Ester enquanto me distraía com uma forma de tornar esse fracasso produtivo.

“Diga”, respondi.

“O senhor precisa ver isso”, ela me informou, guiando-me de volta à bacia onde o porco estava, ou melhor, deveria estar.

Dentro da bacia, a água agora tinha uma cor mais escura, como um azul profundo, enquanto porco tornara-se tão deformado que era indistinguível do animal que fora um dia, enquanto uma massa rugosa crescia para fora das bordas da bacia, como um bolo de carne que tinha explodido para fora da borda.

“Isso ainda está vivo?” perguntei ao ver a estranha criatura que estava se movendo lentamente à minha frente.

“Depende do que o senhor considera vivo. Eu ainda não fiz uma análise preliminar, mas essa coisa parece ser um aglomerado de células de vários tipos. Só que elas não parecem agir de forma ordenada”.

Isso era realmente espantoso. A IA tinha conseguido uma substituição de mais de noventa por cento de um organismo vivo. Aparentemente, não foi um sucesso, mas com certeza não seria um fracasso total.

“Termine a análise preliminar e disseque essa coisa. Eu quero todos os dados na minha mesa amanhã de manhã” falei, deixando o laboratório. Eu poderia ter ficado para acompanhar o passo a passo, garantir que não perdessem nada, mas eu estava pensando à frente, precisava de um especialista em clonagem e reprodução celular e não perderia tempo em conseguir um.

Assim que cheguei em casa, enviei um e-mail para um colega dessa área, para pedir que ele me indicasse alguns profissionais. Com sorte, até o fim daquela semana, teria alguém bem capacitado nesse projeto. Porém, no final daquela mesma semana, eu não teria nem mesmo minha liberdade.

Às vezes me pergunto, se alguém tivesse me falado sobre o que minhas ações causariam, será que eu teria parado? Acho que no fundo eu sei bem a resposta, eu era o melhor, eu era um gênio na minha área, eu não teria parado por nada.

Falta um minuto para a meia noite. Eu me prolonguei de mais na minha escrita e perdi o pouco tempo que me restava. Se bem que, só o fato de terem me deixado vivo até esse momento, já é uma coisa surpreendente.

Já que o tempo está acabando, não tenho como contar o que aconteceu, mas tenho como deixar essas últimas palavras: “O homem e seus pecados caíram sob a sua própria espada”.

Faltam dois segundos e já posso vê-la à minha frente. Ela veio levar seu pai para fora desse mundo, para fora desse inferno.

 

Este é o primeiro capítulo de HELL. Leia os próximos:

  1. Orgulho (20 de setembro)

  2. Preguiça (27 de setembro)

  3. Luxúria (04 de outubro)

  4. Gula (11 de outubro)

  5. Ira (18 de outubro)

  6. Avareza (25 de de outubro)

  7. Inveja (01 de novembro)

  8. Esperança (08 de novembro)

 

O Autor:


Nascido na cidade de Feira de Santana no interior Baiano, Jony Clay Rodrigues (ou simplesmente JC Rodrigues) publicou seu primeiro livro, "A voz do anjo", pela editora EllA, no ano de 2020. Participou da antologia em homenagem a Isaac Asimov publicada pela Arkanus Editora, "Historias do cotidiano" pela Verlidelas, e "Filantropia do mal" organizada por Pris Magalhães.

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