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HELL - Cap. II - Preguiça

Quem nós somos? De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido da vida? O que é coragem? O que é esperança? Como já devem saber, este é o fim do mundo, o lugar que inspirou as maiores obras de ficção e deu poder à religião durante eras, o Ragnarok nórdico e o apocalipse cristão.

Eu poderia dizer o meu nome, mas isso não importa mais, afinal seria o nome de um homem morto, mas podem me chamar de Comum. Ainda tenho algum tempo até a meia noite. Eu deveria estar com a minha família, mas ela não me quer mais, eu estraguei tudo, eles me renegaram pelos meus pecados.

Já se sentiram como se algo não fosse realmente culpa sua, mas a sociedade diz que é, que você é o errado? Se uma pessoa vê um ladrão correndo e não o para, ela foi precavida; já eu, sou considerado o próprio demônio.

Mas isso não importa agora. No final, nada importa, essa é a verdade. Tudo que construímos voltará ao pó, tudo que criamos será desfeito e nosso futuro grandioso não existirá mais, apenas uma terra vazia, ou melhor, cheia de vida, sem o câncer que lhe afligia.

Quando eu era pequeno, a crise ambiental estava em seu auge, eram várias mortes por dia. Cada família tinha várias máscaras dentro de casa, por precaução. Eu morava em uma região de costa e, antigamente, a cidade era cheia de vida, mas as pessoas começaram a fugir para o interior quando as águas do mar começaram a ficar escuras e o fedor de peixe morto começou a se espalhar por quilômetros.

A única coisa que funcionava era o porto, com entrada e saída constantes de mercadoria. Minha mãe quis se mudar várias vezes, mas ficaríamos sem ter o que comer, já que era o trabalho do meu pai que sustentava a casa.

Ele trabalhava dia após dia no porto, carregando sacas pesadas e ajudando a operar máquinas velhas. Com a poluição e a matéria orgânica em decomposição na costa, o mormaço marinho tornou-se extremamente agressivo. As velhas construções começaram a desabar, uma atrás da outra; a água, rica em óxidos, penetrava nas estruturas e oxidava o aço. Era como se as vigas e pilares estivessem explodindo de dentro para fora.

O ambiente era muito agressivo, a maioria das escolas havia fechado as portas. A minha foi uma das últimas, depois que uma chuva ácida caiu e o teto, em péssimas condições, cedeu, matando duas colegas minhas, sem falar na forte reação alérgica que muitos funcionários tiveram ao entrar em contato com a chuva para tentar salvá-las.

Depois desse dia, passei a estudar em casa, pela internet. Meu computador era velho, mas funcionava. Minha mãe fazia questão que eu estudasse várias horas por dia, para garantir que tivesse a oportunidade de um dia sair de lá.

Meu pai nem sempre gostava de me ver estudando, já que ele sempre trabalhara, desde pequeno, mas sabia que não tinha muito que eu pudesse fazer para ajudar, sem falar que ele não pretendia perder mais um filho para aquele trabalho insosso.

Eu ainda me lembro do dia que tudo aconteceu: o céu estava cinza e o cheiro de podridão fazia o meu nariz coçar. Normalmente, eu e minha mãe não íamos as docas, a maioria dos homens lá não tinham família e era um bando de bêbados. Não era um ambiente para a gente, como dizia o meu pai, mas nesse dia a gente teve que ir, pois a marmita deles havia caído no mar.

Minha mãe estava com seus cabelos negros presos para trás, dentro de uma touca, e vestia uma bota pesada, com calça e uma capa de chuva de uma cor vermelha meio desbotada. Já eu, vestia-me muito parecido com ela, com minha botinha e uma capa de chuva preta, com umas nuvens vermelhas.

As docas eram bem mais fedidas que o resto da cidade; os cascos dos navios eram manchados com o ferro que havia oxidado; cracas e vermes que se alimentavam do lodo se moviam sob as ondas que se chocavam contra os quebra ondas.

Andei bem junto à minha mãe nesse dia, de cabeça baixa, para não chamar atenção, porém, às vezes, virava a cabeça para trás, para poder ver os homens altos e fortes do porto que iam de um lado para outro. Vez ou outra minha mãe ouvia um assovio, o que a fazia andar mais depressa.

Depois de alguns minutos, chegamos ao grande navio cargueiro em que meu pai estava trabalhando. As máquinas estavam paradas, haviam quebrado de novo. O ambiente marinho tinha se tornado agressivo demais para elas, daí a necessidade do trabalho manual que mantinha as poucas pessoas que sobraram na costa.

Meu pai nos esperava em frente ao navio, com suas roupas pesadas, revestidas de plástico para tentar proteger um pouco dos vapores do mar. Ele não gostou de me ver lá, com aqueles olhos velhos e cansados, porém não falou nada. Minha mãe lhe entregou a comida e perguntou pelo meu irmão.

Meu pai a olhou por uns dois segundos, então apontou para cima. Meu irmão estava concentrado, trabalhando na ponta do guindaste, onde algum mecanismo tinha dado problema. O guindaste era coberto por ferrugem e parecia vindo direto de um ferro velho, mas não tinha mais que alguns meses de uso.

Não lembro muito mais sobre esse dia, mas ainda lembro dos olhos assustados de minha mãe ao olhar para cima. Meu irmão não estava com o equipamento de segurança, mas sabia se virar. Mesmo assim, meu pai aparentava também estar preocupado. Tudo foi muito rápido: em questão de segundos, minha mãe estava gritando e o meu pai correndo; lembro de ter ouvido um som ao fundo, de algo batendo na água.

Lembranças do passado são sempre dolorosas, mas acho que posso avançar mais um pouco na minha história, até o dia em que me mudei daquele lugar infernal, acho que é como dizem: “Até mesmo o inferno pode ficar pior, basta um homem com determinação de fazê-lo”.

A juventude nas docas não era bem juventude. Para muitos dos meus colegas, era sinônimo de trabalho e vícios. Enquanto eu estudava, muitos deles se dedicaram a aprender algo com que pudessem trabalhar: manutenção, limpeza, carregador, qualquer coisa que pudesse dar dinheiro.

Eu não sei quando foi que aconteceu, mas me distanciei de todos. Vivia no meu quarto, estudando, focado, como uma máquina que foi programada para fazer aquilo. Às vezes, quando eu saía para fazer alguma coisa para a minha mãe, já velha e cansada, eu via alguns garotos da minha idade, mas eles já eram figuras retorcidas das crianças com sonhos que eu conheci na escola ou que iam lá em casa brincar.

Eles tinham corpos grandes, de pele manchada, devido à exposição aos respingos do mar; seus corpos tinham cicatrizes do trabalho duro enquanto as poucas meninas que existiam e que não haviam caído nas drogas, tinham se apressado em casar ou partir. Era perigoso ser uma mulher por aqui, ou simplesmente uma pessoa decente.

Uma noite, meu pai demorou a voltar para casa. Minha mãe estava preocupada, queria ir atrás dele, mas eu não deixei. A idade a havia deixado ainda mais frágil. Vestindo a minha capa de chuva, saí para a noite fétida.

O ar marinho parecia estar estranhamente mais carregado, com seu odor ácido de sempre. A chuva caía pesada sobre mim, era perigoso ficar muito tempo sob ela. Enquanto passava pelas ruelas do porto, pude ver um grande outdoor que fora colocado recentemente e nele dizia: “humanidade para frente, os erros do passado não serão os nossos”.

Essa frase me fez soltar um sorriso amargurado. Quem ainda caía nessas loucuras? A verdade é que só começaram a fazer algo porque o sistema começou a quebrar, doenças comprometiam a produção de alimentos e a redução sumária da população estava acabando com mercados consumidores.

Eu não me importava com essas questões políticas ou sociais, o importante era como isso me afetava diretamente. Eu não era um tolo idealista, e ainda não sou, não me considero uma pessoa amoral, mas sempre fui de evitar fazer coisas que julgava desnecessárias.

Quando cheguei às docas, elas estavam desertas, exceto pelos dois vigias. Eles eram pessoas mal encaradas e geralmente era melhor evitar e passar de cabeça baixa caso não tivesse o que fazer. Mas havia um que era mais amigável, pelo menos comigo, ele era amigo do meu irmão e seu nome era Thomas.

Ele tinha um corpo grande e musculoso e um dos olhos era cego, devido a uma infecção que tivera. Sua pele escura tinha muitas manchas, o que era comum nas pessoas dessa região. Devido ao contato com a água contaminada, a pele sofria queimaduras e ressecamentos, causando manchas por todo o corpo. Minha pele não era muito manchada devido à pouca exposição e as manchas que eu possuía eram escondidas pela minha pele morena.

Thomas estava em seu posto de vigia quando eu me aproximei. Ele olhou minha silhueta, nas sombras, por alguns instantes, até que eu ficasse sob a iluminação fraca das docas. Ele me olhou com aqueles olhos de um castanho escuro que algumas vezes pareciam negros e me deu um sorriso meio forçado, que sumiu rapidamente, como se ele sentisse um pouco de dor.

“Thomas, você viu o meu pai? Ele não voltou para casa ainda” eu perguntei assim que cheguei perto dele. Ele me olhou por alguns segundos, como se estivesse se perguntando se deveria me contar algo e, por fim, se decidiu.

“Eu vi, mas não acho que você deveria ir atrás dele”.

“Por quê?”.

“Ele está no Tio”, respondeu-me Thomas, com um pouco de arrependimento na voz.

Não foi uma surpresa para mim, mesmo assim, não achei que meu pai tinha chegado tão no fundo do poço. O Tio era como chamavam um velho agiota e traficante das docas. Ele era dono do que, nas palavras dele, era um recanto de prazer para velhos marinheiros.

Nos últimos anos meu pai havia ficado cada vez mais distante, sempre brigando com a mãe por besteiras, saindo cedo e indo dormir assim que chegava, cada vez dava menos dinheiro para as compras. Algo havia morrido dentro dele com o passar dos anos.

“Eu vou buscá-lo” falei meio sem confiança. Esse é um dos momentos que mais me arrependo em minha vida. Agir dessa forma e não ter deixado ele para trás e ido embora dali com minha mãe naquela mesma noite.

“Você não vai, eu prometi ao seu irmão que caso algo acontecesse, cuidaria de você”.

“Eu não posso deixá-lo lá”.

“Você pode. Às vezes temos que deixar que as pessoas resolvam os seus próprios problemas”.

“Mas ele é o meu pai”.

“Está bem eu vou com você, mas não garanto que vai gostar do que vai ver”.

Ele foi comigo até um pouco além do porto, para uma região decadente da cidade, que já havia sido abandonada há alguns anos. De longe, eu já conseguia ouvir o som da música alta. Uma hora ou outra via sombras atrás de pilhas de escombros ou escondidas atrás de velhos prédios.

Esses eram os que haviam se tornado improdutivos e era também o futuro de muitas das pessoas que chegavam à velhice do lugar para onde estava indo. Quando se chega a uma certa idade e não se pode mais trabalhar ou se sustentar, muitas pessoas acabam nas ruas da velha cidade, agindo nas sombras, à espera de algum bêbado ou de qualquer coisa que pudessem usar para comer ou conseguir alguns trocados.

O lugar comandado pelo Tio era uma espécie de casa de apostas, com drogas e prostituição. Assim que passei pela porta, com Thomas, pude ver algumas das minhas antigas colegas. Não era uma imagem agradável saber que todas aquelas garotas alegres tiveram um fim assim, forçadas a usar o corpo para sobreviver. Muitas dessas acabaram assim por causa de dívidas dos pais.

Thomas olhou em volta, procurando o meu pai, mas não o viu. No centro do aposento havia uma arena onde dois cachorros brigavam ferozmente enquanto homens se apunhalavam para ter uma boa visão desse espetáculo, enquanto nos cantos mulheres passavam em trajes íntimos que se aderiam como uma segunda pele ao corpo, marcando ainda mais as curvas.

Essa foi a primeira e última vez que fui em um lugar desse tipo. Thomas me mandou ficar em um canto, enquanto saía para fazer algumas perguntas. Ninguém mexeria com ele se tivesse amor à vida. Às vezes me assustava saber que ele era capaz de fazer essas coisas, mas sabia que ele não me faria mal.

Enquanto me recostava em uma pilastra com partes do cobrimento para fora, pude ver os gritos de frustração dos homens que haviam perdido muito dinheiro em uma aposta mal sucedida, porém o que veio depois foi o que me marcou: o outro cachorro não tinha saído em boas condições da luta, provavelmente jamais se recuperaria. Foi sacrificado ali mesmo, na frente de todos, apesar de não achar o termo sacrifício apropriado para isso.

Aparecendo em um projetor, em uma tela acima da arena, o gerente de apostas eletrônicas informou os balanços e, por fim, falou algo que eu não esperava:

“Como Brutos não poderá mais lutar, dou ao desafiante o direito de sacrificá-lo”. A plateia gritou em aprovação e um homem corpulento entrou na pequena arena, com um longo bastão de eletrochoque. Normalmente eles eram usados para derrubar vermes gigantes que, às vezes, subiam nos navios, atrás de comida. Apesar de lentos, eles eram muito venenosos. Quando apareceram, foi um escândalo, a internet se encheu de imagens grotescas e frases sobre como estávamos criando monstros, mas o horror só durou até a chegada de mais um vídeo de gatos.

O cachorro gritou e latiu enquanto o bastão de choque o atingia. Ele continuou a eletrocutá-lo, até o pobre animal ficar sem voz e, por fim, parar de respirar.

“Não achei que você viria aqui um dia”, falou-me uma garota de pele branca, com o rosto cheio de maquiagem.

Eu levei um tempo para reconhecê-la, até que, por fim, o seu sorriso torto e triste me lembrou de uma garota da minha turma, de muitos anos antes. O povo a apelidara de estrelinha, porque vivia cantando a música da estrela.

“Estrelinha” eu falei quando finalmente a reconheci.

“Já faz muito tempo que não me chamam assim, agora é rosa branca, mas pode me chamar assim se quiser”.

“O que aconteceu com você? Pensei que tinha se casado há tempos”. Quando perguntei isso pude ver o rancor em seu olhar.

“Bem, não é uma história feliz, mas acho que elas não existem mais. Bem eu realmente me casei, mas não deu muito certo. Meu marido se encheu de dívidas e uma noite ele simplesmente fugiu, me deixando como pagamento. E aqui estou há mais de um ano. Maldito viciado!”.

“Eu sinto muito”, eu disse meio sem jeito. Tem coisas sobre que não se tem o que dizer.

Ela parecia ter mais coisas para falar, mas um olhar feio de um homem perto da parede a fez sair andando, provavelmente não podia ficar de papo por muito tempo. Se não conseguisse nada, deveria ir para outro.

Depois de um tempo, Thomas voltou, mas algo no seu olhar me dizia que ele não gostou do que tinha ouvido. Às vezes, na vida, há esses momentos nos quais não sabemos o que vai acontecer e nossas mãos começam a suar e nossa respiração fica rápida.

“Vamos” foi tudo o que ele falou, até estarmos no meio da rua, vagando na escuridão.

“Você sabe o que aconteceu com o meu pai?” perguntei depois de um tempo.

“O que eu desconfiava: ele estava cheio de dívidas, provavelmente tomou uma surra em algum canto. Se procurarmos direito podemos encontrá-lo”.

Nós demos algumas voltas pelos quarteirões próximos, até que, por fim, um gemido em um antigo prédio, cujo teto já começara a ceder há muito tempo, chamou minha atenção. Meu pai realmente estava lá. Foi uma imagem que gostaria de poder esquecer, mas infelizmente não consigo.

Ele estava todo ensanguentado, mal podia andar. Alguns dos seus dentes estavam no meio do sangue, que manchava suas roupas enquanto se misturava à sujeira do local.

“Pai!” eu chamei, me aproximando dele.

Quando me viu, seus olhos inchados começaram a se encher de lágrimas. Mesmo cheio de dor, ele começou a implorar perdão, enquanto tentava se levantar, agitado, porém não tinha forças para isso.

“Se acalme” disse Thomas, enquanto o segurava imóvel.

“Me desculpe eu não pude fazer nada. A sua mãe, a sua mãe…” ele falou, caindo em desespero.

“Pai, a mãe tá bem, ela está em casa, assim que cuidarmos de você, a gente te leva até ela”.

“Não, você tem que buscá-la, ele vai atrás dela” ele falou, se lamentando enquanto cada vez mais rápido a voz dele ficava fanha.

“Quem vai atrás da mãe? Pai, o que o senhor fez?”.

“Eu não queria, eu não queria, mas era tão difícil parar. A dívida foi aumentando, ele disse que queria compensação, eu não queria concordar, mas ele me batia toda vez que eu dizia não, ele me fez concordar” falou meu pai com as poucas forças que tinha.

“Pai, pai, pai” eu chamei, mas ele não estava mais consciente. Nesse momento, minha mente estava agitada. Sempre me perguntei, caso eu tivesse entendido antes, se eu poderia ter feito algo, mas no fundo sabia que não tinha nada que eu pudesse fazer.

Eu quis correr direto para casa, mas Thomas não me deixou. Ele sabia mais sobre o mundo do que eu, naquela noite. Eu só voltei para casa no início da manhã do dia seguinte, o nascer do sol sobre o mar de águas escuras era algo espectral, com o céu com tons de roxo e azul sobre as águas escuras.

Quando abri a porta, não sabia o que esperar. Meus olhos, meio fechados por passar a noite em claro, tiveram dificuldade em focar nas coisas dentro da penumbra que era a casa. Uma vez, enquanto estudava, vi uma frase que dizia “nada grita mais alto que o silêncio”. Acho que quem pensou nela tinha passado por situações como essa, um silêncio tão profundo que chegava a fazer os ouvidos zumbirem.

Quando atravessei a soleira da porta, pisei em algo molhado. Era sangue. Não sei o que me deu, não sei porque não corri para dentro ou simplesmente desabei. Ao invés disso, liguei a luz e andei calmamente até a parte de trás da casa. As coisas havia sido reviradas e muitos dos eletrodomésticos haviam sumido.

O sangue manchava as paredes. Quando cheguei ao fundo da casa pude ver o corpo da minha mãe machucado, ensanguentado e morto. Nesse momento, foi como se o mundo tivesse parado, eu não conseguia falar ou mesmo me mover, parecia que minha mente tinha simplesmente se tornado incapaz de pensar.

Lembro-me vagamente do que aconteceu depois. Thomas me tirou de casa e cuidou de mim e do meu velho pai nos dias seguintes. Eu estava indo para o fundo do poço, assim como ele. Tinha que fazer algo. Alguns dias antes havia recebido a informação de que tinha sido aceito em uma universidade. Essa era a chance que precisava para mudar de vida e foi o que aconteceu. Deixei tudo para trás, meu passado, minha história e, principalmente, o meu pai. Não aguentava mais olhar nos olhos dele. A última vez que o vi foi quando parti daquele lugar e me recusei a ouvir suas desculpas ou fosse lá o que ele quisesse dizer.

Quando cheguei na universidade foi como se meu mundo tivesse simplesmente expandido. Acordar de manhã e não sentir aquele cheiro podre para mim era um alívio. A cidade ainda sofria com problemas de superpopulação e tinha começado um grande debate sobre desapropriações de terra e medidas para contornar a crise que abatia todas as nações do mundo.

Foi nessa época que eu o conheci, aquele miserável, o homem que arruinou minha vida! Eu poderia contar a nossa história juntos, mas não quero falar muito sobre ele para não aumentar o seu egocentrismo onde quer que ele esteja no momento.

“A grande crise”, “A usurpação” foram alguns dos nomes dados para o evento que aconteceu naquela semana. Se alguma pessoa tivesse me falado que aquilo que aconteceu era possível eu a chamaria de louca, mas se pararmos para pensar, o impossível não é algo ilógico. Nós somos frutos de milhares de anos de evolução e de uma série tão grande de coincidências que a nossa própria existência poderia ser tida como impossível.

Eu estava fora da cidade, com minha família, durante o começo da crise. Segundo uma reportagem que apareceu alguns dias depois, levou cerca de quatro horas para oitenta por cento da cidade ser infectada.

As primeiras horas foram transmitidas ao vivo para mundo. O primeiro relato foi de que algumas pessoas tinham começado a passar mal na região dos laboratórios. A suspeita de contaminação química foi a primeira, o que causou uma demora no atendimento.

A primeira pessoa a chegar ao hospital tinha passado mal há quarenta e cinco minutos, quando o número de relatos ao redor dos prédios do laboratório já chegava a quase duzentas pessoas. Sem frota ou conhecimento do elemento contaminante, os hospitais enceraram o atendimento àquela região, por precaução, enquanto recebiam as análises do laboratório, mas já era tarde demais.

Cinco minutos após a primeira vítima chegar os socorristas começaram a passar mal, suas temperaturas aumentaram rapidamente, um quadro de hipertermia se formou em minutos, suas peles começaram a transpirar sangue enquanto eles começavam a perder a consciência.

Com uma hora e meia, o número de relatos já não podia ser contado, carros estavam batendo nas laterais das vias altas criando um grande engarrafamento. Pessoas desesperadas saíam de seus veículos e corriam por suas vidas. Na internet, lives mostravam o caos se espalhando, pessoas caindo em agonia e sendo pisoteadas pela multidão em fuga.

Nos hospitais, duas horas depois dos primeiros relatos, cinquenta por cento da equipe já tinha sido infectada. Não havia salas herméticas o suficiente para realizar a quarentena, o resultado da análise preliminar havia chegado e fora inconclusiva: mais de cinquenta espécimes de patógeno foram identificados, assim como um componente mecânico de fabricação incerta.

Os dados foram enviados ao governo, que começou a planejar uma ação militar adequada para a situação. Essa ação levou seis horas para ser tomada. Na internet, a live de uma garota em prantos chocou o mundo: enquanto chorava e pedia por socorro, ela corria pela cidade.

O som das sirenes de alerta era alto, porém não encobria o gemido de pessoas implorando por socorro, caídas pelo meio da rua. Algumas já tinham parado de gemer e agora começavam a se desfazer em plena rua, como se seu corpo estivesse se transformando em uma mistura grotesca de músculos, carne e nervo.

A garota assustou-se quando um cérebro estourou e caiu no chão. Ela não tinha mais forças para continuar a correr. Com o fim da transmissão o mundo tinha entrado em choque. Acusações vinham de todos os lados, assim como teorias da conspiração fervilhavam por toda a rede.

Após seis horas do primeiro relato, houve a intervenção militar, com a perda sistemática dos sistemas de comunicação, tal como a infraestrutura de organização da cidade fez o governo federal agir de forma emergencial, aprovando em tempo recorde um plano de esterilização da região.

Às quatorze horas do dia zero da grande crise, o governo lançou uma Bomba de Hidrogênio para limpar toda a região, levando em consideração que era transmitido pelo ar e que a radiação destruiria os componentes mecânicos, assim como esperando que a onda de choque garantisse que ninguém nas proximidades da cidade escapasse.

Apesar dos avanços da ciência, uma bomba de hidrogênio ainda é a maior arma de destruição já criada. Ao atingir o solo, cria uma cratera de trezentos metros de diâmetro e sessenta e um de comprimento. No epicentro, as temperaturas aproximam-se às do sol, evaporando pessoas e objetos, em um raio de 3,3 km. Todos os prédios seriam derrubados pela onda de choque, a 6,9 km. Os ventos chegaram a velocidades em torno de 250 km/h.

Eu pude ver da cidade onde estava, a cerca de sessenta quilômetros do epicentro da explosão, a nuvem em cogumelo que se formou. Em seguida, a internet foi à loucura com isso, alguns chamando de genocídio outros de sacrifício necessário, causando uma polarização política.

Nesse dia, fiquei feliz por estar fora da cidade. Ainda me lembro da minha filha me abraçando com força, com medo, me perguntando sobre as suas amigas da escola. O governo enviou tropas para o entorno da cidade, criando um grande cerco. Vinte e quatro horas após o primeiro relato, um grande cerco militar havia sido feito, enquanto políticos se matavam para não ser a cabeça a rolar nesse incidente.

Nos dias seguintes a isso, apesar das tensões e medos da população, diziam que a catástrofe havia sido evitada, porém às 23 horas do dia 15 de outubro, em um site obscuro da deep-web, um hacker se pronunciou, dizendo ter encontrado um sistema de segurança inquebrável.

Esse evento foi chamado de caça ao tesouro. Os maiores hackers do mundo tentaram burlar esse sistema para descobrir quem estava por trás dele, as apostas variavam entre CIA e agências secretas Russas, mas era outra coisa, uma coisa que ainda não tinha mostrado a sua face.

Um mês depois da Grande Crise, o atentado misterioso recomeçou em vários lugares do mundo, sem padrão aparente, porém dessa vez foi mais controlado, apenas trinta por cento da população da região era morta. Claro que isso podia ser equivalente a 800 mil pessoas, dependendo da região. Essa fase do mundo foi chamada pelos religiosos como o primeiro reinado regido pelo cavaleiro da pestilência.

Muitas coisas aconteceram nos dias após a grande crise, mas nem tudo é de conhecimento público. Não sei para quem estou narrando isso aqui nesse cantinho escuro. Queria estar com minha filha nesses últimos minutos, mas ela está bem distante de mim agora. “Ela não pode ter um pai covarde” foi o que me disseram após levarem ela embora.

O cabo da faca esta suado sob a minha mão, eu tenho poucos minutos. Ela me levou tudo, porém não deixarei que tome a minha vida. Com os dentes cerrados, corto o meu pulso na vertical. O sangue vermelho mancha a minha roupa antes de eu deixar meu braço cair para o lado. O sangue morno escorre pelo chão. Está feito e ainda falta um minuto para meia noite. Adeus quem quer que você seja.

 

Este é apenas um capítulo de HELL. Leia os demais:

  1. Orgulho (20 de setembro)

  2. Preguiça (27 de setembro)

  3. Luxúria (04 de outubro)

  4. Gula (11 de outubro)

  5. Ira (18 de outubro)

  6. Avareza (25 de de outubro)

  7. Inveja (01 de novembro)

  8. Esperança (08 de novembro)

 

O Autor:


Nascido na cidade de Feira de Santana no interior Baiano, Jony Clay Rodrigues (ou simplesmente JC Rodrigues) publicou seu primeiro livro, "A voz do anjo", pela editora EllA, no ano de 2020. Participou da antologia em homenagem a Isaac Asimov publicada pela Arkanus Editora, "Historias do cotidiano" pela Verlidelas, e "Filantropia do mal" organizada por Pris Magalhães.

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